Polícia Civil e Brigada Militar deflagram, na manhã desta quinta-feira, a Operação Truck Hunters, que visa o desmantelamento de uma das organizações criminosas especializadas em furto de caminhões do Rio Grande do Sul. Vinte pessoas foram presas.
Ao todo, são cumpridos 28 mandados de prisão preventiva e 54 mandados de busca e apreensão em diversas cidades do Estado, atingindo uma organização criminosa que aterrorizou caminhoneiros gaúchos e empresários do ramo de transporte e logística por mais de dois anos com um esquema que combinava furtos qualificados, extorsão sistemática das vítimas e operação de desmanche em escala industrial.
Os mandados serão cumpridos simultaneamente em São Leopoldo, Novo Hamburgo, Viamão, Gravataí, Canoas, Guaíba, Porto Alegre, Capão da Canoa, Tramandaí, Portão, Alvorada, Sapucaia do Sul, Mariana Pimentel, Santa Maria e outras cidades, além de estabelecimentos prisionais onde alguns dos líderes já se encontravam custodiados.
A organização criminosa funcionava como uma verdadeira empresa do crime, com departamentos especializados, hierarquia rígida e procedimentos operacionais padronizados que permitiam furtar, extorquir e desmanchar caminhões com eficiência industrial.
Dentre os principais integrantes da ORCRIM, estava R.O.S., de 45 anos, com impressionantes 15 passagens criminais anteriores, considerado o cérebro por trás de todo o sistema. Ele coordenava desde a identificação dos alvos até a venda final das peças, além de fabricar pessoalmente as sofisticadas “chaves micha” – chaves mestras capazes de ligar qualquer caminhão – que eram distribuídas para os executores.
O terceiro membro do núcleo dirigente era J.N.S.G., especialista em duas atividades cruciais para o sucesso da organização: o planejamento meticuloso dos furtos e, principalmente, a extorsão sistemática das vítimas. Josué desenvolveu uma verdadeira metodologia para aterrorizar os caminhoneiros, apresentando-se como alguém “do mundo do crime há muito tempo” que mantinha seus subordinados “na linha”.
Completando o alto escalão, I.R.L assumia o papel de controlador financeiro, gerenciando os pagamentos aos executores e as transações que sustentavam toda a operação. Era ele quem decidia quanto cada criminoso receberia por serviço prestado e coordenava as movimentações bancárias necessárias para manter a organização funcionando.
Entenda o esquema criminoso
Fase 1: A Caçada
A operação começava com um elaborado sistema de inteligência criminal. Membros da organização se posicionavam em postos de combustível, especialmente ao longo da BR-116, RS-122 e outras rodovias importantes, observando caminhões que carregavam mercadorias valiosas. Ração animal, materiais de construção, produtos eletrônicos e cargas em geral eram os alvos preferenciais.
Quando identificavam um alvo promissor, os criminosos iniciavam um “levantamento” detalhado. J.R.M., um dos membros especializados nessa função, chegava a fotografar e filmar não apenas o caminhão, mas todo o entorno onde o veículo estava estacionado. Essas imagens eram compartilhadas via WhatsApp com os líderes da organização, que analisavam a viabilidade da operação considerando rotas de fuga, horários de movimento e presença policial na região.
Os furtos eram executados com precisão militar. Equipes de dois ou três criminosos se aproximavam do alvo usando as “chaves micha” fabricadas por um dos líderes do esquema. Essas chaves especiais, resultado de anos de experiência criminal, eram capazes de dar partida em qualquer modelo de caminhão, eliminando a necessidade de arrombamento ou danos visíveis ao veículo.
Durante a ação, outros membros faziam “campana” em pontos estratégicos, alertando sobre qualquer aproximação policial através de mensagens instantâneas.
Fase 3: O Terror da Extorsão
Aqui residia talvez o aspecto mais cruel de toda a operação. Poucas horas após o furto, as vítimas recebiam ligações telefônicas dos membros especializados em extorsão. O roteiro era sempre similar e calculadamente aterrorizante.
“Olha, eu tenho o seu caminhão aqui”, começava a conversa. “Você pode resolver isso de duas formas: ou paga o que eu tô pedindo e você tem seu caminhão de volta inteiro, ou a polícia vai encontrar ele só em pedaços”. Os valores exigidos variavam entre R$ 5.000 e R$ 100.000,00, dependendo do modelo do veículo e do valor da carga.
O mais perverso era a manipulação psicológica das vítimas. Os criminosos se apresentavam como “profissionais” que preferiam “resolver tudo de forma amigável”, desencorajando as vítimas de procurar a polícia. “É melhor você não envolver os caras, porque aí complica para todo mundo”, dizia um criminoso, em uma das conversas interceptadas. “Eu tô nessa há muito tempo, meus piás fazem o que eu mando, então é melhor a gente conversar”.
Muitas vítimas, desesperadas pela perda de seu meio de subsistência e aterrorizadas pelas ameaças, acabavam cedendo à extorsão. Os pagamentos eram feitos através de transferências bancárias para contas de terceiros ou, em alguns casos, entregues pessoalmente em locais combinados.
Quando as vítimas não pagavam o “resgate” ou quando a organização decidia que era mais lucrativo vender as peças, os caminhões eram levados para os galpões de desmanche. A operação havia estabelecido uma verdadeira linha de produção para essa atividade.
Em Viamão, um galpão funcionava 24 horas por dia. R.B.N., mecânico especializado em veículos pesados, coordenava equipes que conseguiam desmantelar completamente um caminhão em menos de 12 horas. Cada parte era catalogada e separada: motor, câmbio, diferencial, cabine, chassis, pneus, bateria, sistema elétrico.
O processo era tão sistemático que incluía a adulteração completa da identificação dos veículos. Placas eram trocadas, números de chassi eram raspados e substituídos, e até mesmo a pintura era alterada para dificultar qualquer tentativa de identificação posterior.
Fase 5: A Rede de Receptação
A organização havia desenvolvido uma extensa rede de receptadores em diversas cidades gaúchas. V.S.S., com 21 antecedentes por receptação, era o principal comprador das peças desmanchadas. Operando a partir de Guaíba, ele redistribuía as autopeças para oficinas e revendedores em toda a região metropolitana. Ele é o proprietário de uma empresa localizada em Guaíba, especializada no serviço de transporte, remoção de equipamentos, máquinas e veículos. Também atua no seguimento de aluguel de caminhões equipados com guindaste hidráulico.
R.B. especializou-se em emprestar sua identidade para locação de imóveis utilizados como base de operações. Foi em seu nome que diversos galpões foram alugados, sempre com contratos que incluíam cláusulas que facilitavam o uso clandestino dos espaços.
A organização mantinha um sistema sofisticado para obtenção de documentos falsos. J.B.F. e M.S. tiveram suas identidades utilizadas fraudulentamente em diversos contratos de locação. A investigação encontrou cópias de documentos desses cidadãos nos celulares dos criminosos, evidenciando o uso sistemático de identidades de terceiros.
Em mais de dois anos de atividade, a organização criminosa deixou um rastro de destruição por todo o Rio Grande do Sul. Mais de 80 ocorrências policiais foram vinculadas diretamente aos membros da quadrilha, envolvendo dezenas de caminhões furtados e centenas de vítimas extorquidas.
O impacto econômico vai muito além dos veículos subtraídos. Empresas de transporte tiveram que contratar seguranças privados, instalar rastreadores mais sofisticados e alterar rotas para evitar pontos conhecidos de ação da quadrilha. Caminhoneiros autônomos, muitos deles sustentando famílias inteiras com um único veículo, perderam não apenas seus meios de transporte, mas sua fonte de renda.
A investigação mapeou atividade criminosa da organização desde fevereiro de 2023 até abril de 2025, demonstrando que o grupo continuava operando ativamente até o momento da deflagração da operação.
Com o desmantelamento desta organização criminosa, a Polícia Civil espera proporcionar alívio significativo ao setor de transportes gaúcho e justiça às centenas de vítimas que sofreram com as ações deste grupo criminoso altamente especializado.
Correio do Povo






