O capítulo mais aguardado da trágica história da boate Kiss foi escrito na tarde desta sexta-feira (10), com a virada de uma página que poderá trazer alívio para as feridas da comunidade de Santa Maria. Por decisão dos sete jurados, os réus Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Hoffmann, Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos foram condenados por homicídio, com dolo eventual, pelas mortes de 242 pessoas na madrugada de 27 de janeiro de 2013, quando a casa de festas pegou fogo e espraiou fumaça tóxica.
Os jurados aceitaram a tese do dolo eventual, sustentada pela acusação do Ministério Público, o que redundou em penas mais pesadas. O juiz Orlando Faccini Neto, presidente do júri, determinou que os personagens de um dos mais dramáticos episódios da história moderna do Brasil deixassem o Foro Central I, em Porto Alegre, detidos para o imediato início da execução da pena. Eles iriam direto ao presídio, mas sem a necessidade de algemas, pediu o magistrado. Quando ele terminou de anunciar a prisão, foi comunicado de um habeas corpus preventivo concedido pela Justiça para protelar a execução da pena. O habeas corpus era para um réu, Spohr, mas o magistrado tomou a decisão cautelosa de estender aos demais. Agora, será necessário aguardar o julgamento de mérito desse habeas corpus, ou outras medidas paralelas, para definir o momento de início da execução da pena.
O juiz Orlando, por volta das 18h, anunciou as penas da seguinte forma:
- Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, sócio da Kiss – condenado a 22 anos e seis meses de prisão em regime fechado
- Mauro Hoffmann, sócio da Kiss – condenado a 19 anos e seis meses de prisão em regime fechado
- Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira – condenado a 18 anos de prisão em regime fechado
- Luciano Bonilha Leão, produtor de palco da banda Gurizada Fandangueira – condenado a 18 anos de prisão em regime fechado
O mais longo júri já realizado no Judiciário gaúcho, com duração de 10 dias, teve a sentença lida pelo magistrado após cerca de uma hora de reunião na sala secreta entre o juiz e os jurados, acompanhados por representantes da acusação e da defesa. Foi nesse ambiente reservado que Orlando leu perguntas aos jurados, conhecidas tecnicamente como quesitos, sobre o dolo eventual, a culpa sem intenção ou a inocência dos réus. Como o Conselho de Sentença decidu pelo dolo eventual, coube ao juiz estipular a pena.
Entre a manhã e o início da tarde, o Ministério Público e as bancadas de defesa finalizaram a etapa dos debates, que havia sido iniciada na quinta-feira (9). Os debates constituem a última chance de buscar o convencimento dos jurados. E ali se digladiaram os promotores do Ministério Público, apontando que os réus assumiram o risco de matar e tiveram conduta indiferente, e as bancadas de defesa sustentando que não houve intenção nem ideia de que esse resultado poderia acontecer.
Os promotores David Medina da Silva e Lúcia Callegari trouxeram imagens de impacto da tragédia para dar a dimensão da gravidade do fato. Nesta sexta-feira (10), expuseram vídeo de corpos de jovens falecidos à porta da boate. No dia anterior, reproduziram foto de dezenas de cadáveres, lado a lado, esperando por identificação. Também foi exibido um vídeo do interior da boate em meio ao sinistro, com pessoas afundadas nas profundezas de uma escuridão total, com angustiantes e crescentes gritos, mesclados ao estrondo de coisas caindo e quebrando.
A acusação insistiu que os envolvidos contaram “com a sorte de que nada iria acontecer” ao reunir numa mesma boate fatores como possível superlotação, barreiras metálicas que dificultaram locomoção, extintores de incêndio que se mostraram inutilizáveis e a colocação de uma espuma de colchão no teto por conta do proprietário Spohr, atingida pelas fagulhas de um fogo de artifício de uso externo, mas que foi usado dentro da casa de festas e deu início à tragédia. Para indicar o dolo eventual, o conhecimento de que algo errado poderia sair, exploraram que engenheiros não indicaram a colocação de espuma na boate para conter ruídos e expuseram a licença de operação ambiental da Kiss que vedava o uso de fogos no seu interior.
Já as defesas reiteram que seus clientes, sobretudo Spohr e Hoffmann, donos da Kiss, confiaram no poder público, que havia conferido licenças para o funcionamento da boate. Afirmaram que órgãos estatais, como a prefeitura de Santa Maria, os bombeiros e o Ministério Público, deveriam estar representados no banco dos réus por possíveis falhas de fiscalização. Advogados bradaram que os quatro réus serviram de “bois de piranha” para proteger supostas elites do setor público. Ainda insistiram que o caso deveria ser enquadrado em homicídio culposo, sem intenção.
As bancadas defensivas, com reconhecida competência nos bastidores do júri, apontaram dia após dia a tese de que o dolo eventual requer mais do que assumir o risco, mas que o sujeito tenha a noção de que um resultado trágico pode acontecer e, mesmo assim, ele decide continuar em sua trama. O exemplo do motorista de carro foi o mais usado. Os advogados dos réus expuseram a tese de que o motorista bêbado que atropela e mata pode ser enquadrado no dolo eventual porque a vítima fatal era uma consequência perceptível diante dos seus atos imprudentes e contra a lei. E, mesmo assim, ele continuou. No caso da Kiss, buscaram afirmar, isso não existia. Segundo eles, os réus não vislumbravam que suas condutas resultariam no morticínio.
Fonte: GauchaZH.