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Muçum: luto, fuga e recomeço na cidade devastada por cinco enchentes desde setembro de 2023

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Um ano após segurar pela mão a mãe morta para que ela não fosse arrastada pela enxurrada, a aposentada Elisabete Simonaio, 66 anos, instalou a cozinha no banheiro do segundo piso, com medo de que outra inundação leve embora o que sobrou dos móveis. Perto dali, a dona de casa Cleci Ribeiro, 71, mantém as roupas sempre protegidas em sacos pretos de silagem, para nunca mais tiritar de frio aos pés do Cristo Crucificado, coberta apenas pela toalha do altar da igreja. O bombeiro civil Lucas Horn, 38perdeu o emprego e teve embargado o prédio onde morava, em cujo telhado se refugiou abraçado ao cão Thor. Ponteiro de uma multidão em fuga que invadiu a casa mais alta da rua, o motorista Antonio Correa, 54, mora de favor enquanto tenta se reerguer levando os vizinhos para fazer compras nas cidades do entorno.

Por onde se anda e com quem se conversa em Muçum, estão expostos os traumas e as cicatrizes da enchente de setembro de 2023. Na virada do dia 4 para o dia 5, o município foi devastado por chuvarada que despejou 20 milhões de litros d’água por segundo sobre seus 4.601 moradores. O Rio Taquari transbordou e invadiu a cidade, destruindo 80% da zona urbana, afetando 70% das empresas e matando 15 pessoas.

Desde então, outras quatro inundações — uma emnovembro, duas em maioe outra emjunho — arruinaram boa parte do que vinha sendo recuperado. O dano maior, todavia, foi na autoestima e na saúde mental dos habitantes. Com medo de um novo desastre, cerca de 1 mil pessoas foram embora— o equivalente a 21% da população. Quem ficou tem medo de qualquer gota mais forte que cai do céu, qualquer estrondo vindo das nuvens.

— Nunca vou estar segura enquanto não estiver lá em cima. Só lá vou deitar e conseguir dormir — diz Cleci.

“Lá em cima” é o bairro Cidade Alta, onde a prefeitura está construindo um loteamento para quem perdeu a casa. Cleci teve a dela derrubada pelo aluvião de setembro. Ela alugou outra, onde passou a dormir no porão toda vez que chovia. Em maio, acordou com o colchão molhado. Nesse período, Cleci, os dois filhos e o genro passaram 79 dias em abrigos. Dormiram em praça, igreja, CTG, ginásio, escola e posto de gasolina. Dos quatro membros da família, três tomam ansiolítico.

Hoje eles moram em outra casa alugada, no terreno ao lado da antiga casa própria. A maioria dos móveis é alugada, as roupas permanecem ensacadas e eles resistem a comprar algo novo, após perder tudo duas vezes seguidas.

“Enquanto a gente estiver aqui, não compro nada. Nós temos vida. É o que importa. Quando tivermos uma casa nova, longe do rio, daí sim. A primeira coisa que vou comprar é um fogão a lenha.”
ROSÂNGELA RIBEIRO
Filha de Cleci

Busca por nova chance longe da água

 

Odonto

Lucas Horn não esperou muito tempo para se refugiar na Cidade Alta. Tão logo as águas de setembro, baixaram, ele se pôs a limpar o edifício de três andares onde morava, na Avenida Nossa Senhora de Fátima. Os demais moradores foram embora e ele ficou sozinho a retirar o lodo e entulhos acumulados nos sete apartamentos. Quando terminou a faxina, o prédio foi interditado, sob risco iminente de desabamento.

Lucas alugou uma casa distante do rio, mas logo sentiu que tinha prazo de validade no novo lar. O turno da madrugada, no qual trabalhava no Curtume Bom Retiro (CBR), foi extinto logo após a enxurrada de setembro. Com 359 funcionários, a empresa era a maior empregadora de Muçum, ocupando 7,8% da população e respondendo por 9,14% da arrecadação municipal de ICMS.

As enchentes sucessivas diminuíram a produção e, consequentemente, o número de funcionários. Lucas passou a trabalhar de dia, mas a renda caiu à metade, de R$ 4 mil para R$ 2 mil mensais. Ressabiado diante do êxodo dos colegas e da escassez de oportunidades, tirou férias no início do mês passado e começou um curso de química em Estância Velha, no Vale do Sinos.

Nesta terça-feira (3), Lucas assinou a rescisão trabalhista. Após quatro anos no curtume, vai em busca de outro rumo profissional. A 150 quilômetros de Muçum e no berço da indústria coureiro-calçadista gaúcha, ele espera por um recomeço, perto de Thor e longe de qualquer curso d’água violento.

“Por mim, não sairia de Muçum. Mas ficou difícil demais permanecer, para mim e para o Thor. O bichinho nem pode mais ver água.”
LUCAS HORN
Bombeiro civil

Até setembro, havia 255 empresas instaladas em Muçum. Ao menos 20% encerraram as atividades após as enchentes, segundo levantamento da prefeitura. Numa única quadra da Rua Barão de Rio Branco, a principal do município, há 13 lojas fechadas e três abertas. O cenário é semelhante em toda a cidade, com imóveis abandonados, as fachadas sujas de lama e com cartazes de “aluga-se” e “vende-se” grudados na vitrine.

Ainda há entulhos debruçados sobre alguns prédios, sofás e colchões atirados em terrenos baldios e uma camada de vegetação nascendo sobre o lodo espesso acumulado em apartamentos e sepulturas. Na estreita faixa urbana espremida entre o Rio Taquari e os morros escalavrados por deslizamentos, pouca gente anda na rua, carros passam muito de vez em quando e os gatos e cachorros vadios praticamente sumiram depois da última enxurrada.

Menos renda, mais dívidas

Com menos oferta de comércio e serviços, os moradores precisam viajar para fazer compras, ir ao médico ou até mesmo pagar uma conta. Esse transporte intermunicipal se tornou a principal fonte de renda de Antonio Correa.

Ex-caminhoneiro, Correa era o taxista mais requisitado de Muçum. A enxurrada inutilizou a casa própria, prestes a ser quitada, e seus dois carros. Desde então, ele mora com a família numa casa emprestada pelos patrões da esposa, que visitam o imóvel aos finais de semana.

Com o dinheiro do seguro, ele financiou dois novos veículos e passa o tempo circulando pelo Vale do Taquari, enquanto a mulher faz corridas curtas dentro de Muçum. A renda diminuiu, as dívidas aumentaram e ele não tem a menor perspectiva de quando vai ter um lugar para chamar de lar.

“Eu ganhei móveis novos, comprei outros, mas veio a enchente de maio e levou tudo embora ainda na caixa. Estamos recomeçando pela segunda vez, mas é muito difícil.”

Para Elisabete Simonaio, o recomeço é no segundo andar do sobrado de 206 metros quadrados que herdou do pai. Lá embaixo, a conversa ecoa nas salas amplas despidas de mobiliário. Com a casa invadida pela água três vezes desde setembro, duas vezes alcançando 5m de altura e 1m80cm na inundação mais baixa, ela desistiu do primeiro piso. Restam cadeiras de praia dobradas num canto e um balcão pia empilhado em cavaletes na antiga cozinha.

— Eu ganhei móveis, louça, tudo novo de uma médica depois da primeira enchente. Era tudo muito lindo, eu chorei quando o caminhão estacionou aí na frente. Daí veio maio e eu perdi tudo novo — lamenta.

Em setembro, Elisabete se refugiou com a mãe num dos quartos do segundo andar. Aos 90 anos, a senhora escorregou de um sofá e mergulhou na água fria e barrenta que inundava a casa. Quando emergiu, já não respirava. Elisabete passou a madrugada segurando a mãe para que a correnteza não levasse o corpo embora.

Tamanho trauma não fez ela desistir do imóvel. A filha tentou levá-la para morar no município vizinho de Encantado, mas ela ficou apenas dois dias. Agora, a vida acontece no andar de cima do velho casarão.

Um quarto é o de dormir, outro virou sala de TV e no terceiro Elisabete passa os dias ensacando os pertences, adesivados com seu nome, antes de subir as cargas pelo alçapão do forro no banheiro que virou cozinha, com uma mesa de fórmica cobrindo o vaso sanitário e o box do chuveiro transformado em despensa. Nas paredes nuas e salpicadas por manchas pretas de mofo, ficaram as marcas dos retratos de família levados pela enchente.

“Fotografia do meu marido, só sobrou a do cemitério. É triste. Eu nem vi passar o ano. Não pude sentir o luto direito e tem noites que eu sonho com a água correndo atrás de mim. Mas quando é a terra da gente, a casa da gente, é difícil ir embora. Não é só uma casa, uma parede. Tem lembranças.”
ELISABETE SIMONAIO
Aposentada

*GZH

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